Senti o sangue fugir do rosto. A lembrança me atingiu como um soco. Era verdade. Eu me lembrava do olhar desesperado de Larissa, o sangue em suas pernas, ela implorando e o meu desprezo. Como eu pude?
— Você destruiu a vida dela naquele dia — Diogo continuou. — E quase destruiu a do Gabriel também. O que você esperava? Que depois disso ela corresse pra você e dissesse: “Olha, seu filho está aqui”? Ela tentou, Alessandro. Ela tentou. Mas você não quis ouvir.
Fechei os olhos novamente. A vergonha era sufocante e uma parte de mim queria gritar, dizer que fui enganado, que não sabia. Mas a verdade é que eu não quis saber. Fui covarde. Fui cruel. E agora… agora a vida cobrava o preço.
— Eu queria odiar todo mundo — confessei, sentindo um nó na garganta. — Queria te odiar por não me contar. Queria odiar a Larissa por esconder o meu filho. Mas a verdade… é que eu errei primeiro. E nada… nada vai me devolver o tempo que eu perdi com o Gabriel.
— Não vai — Diogo disse, simples. — Mas você ainda tem a chance de estar com ele agora. Ainda pode fazer diferente.
Abri os olhos, sentindo uma lágrima escapar, quente, percorrendo minha têmpora até se perder no travesseiro.
— O dia que o vi na escola ou no shopping, eu senti alguma coisa familiar. O olhar dele, Diogo… era diferente.
— Talvez ele sentia também — Diogo respondeu. — O sangue fala e o coração também.
Ficamos em silêncio por um longo tempo. Diogo sentou na poltrona ao lado da cama. A madrugada parecia congelada do lado de fora. Mas, dentro de mim, tudo começava a se partir, a se reconstruir.
Eu tinha perdido anos, o nascimento do meu filho, os primeiros passos, as primeiras palavras. Mas eu ainda podia ser pai. Ainda podia tentar. Se Larissa deixasse. Se Gabriel me aceitasse.
— Eu só quero uma chance, Diogo — murmurei. — Uma chance de fazer diferente. De ser o pai que ele merece.
Diogo olhou pra mim com um misto de cansaço e esperança.
— Então começa por reconhecer o que você fez. Procura a Larissa. Pede perdão. Olha nos olhos dela e mostra que mudou. Porque se tem uma coisa que ela merece… é verdade.
Assenti devagar, engolindo em seco.
— E o Rafael? — perguntei.
— Rafael ama o Gabriel. Não vai ser fácil pra ele, mas ele também sabe que a verdade precisa vir à tona. Vai doer pra todo mundo. Mas não tem mais como esconder nada, Alessandro. Acabou.
— É… acabou.
Mas, talvez, algo também estivesse só começando.
***
O quarto estava mergulhado em silêncio. A única coisa que eu conseguia ouvir era o som intermitente do monitor cardíaco e a minha própria respiração, ainda um pouco instável. A dor nas costas pulsava de leve, como um lembrete constante do que eu tinha feito. Doar um rim não é qualquer coisa, mas eu fiz, e faria de novo.
Fechei os olhos, tentando encontrar algum descanso, quando ouvi o clique da maçaneta girando. Suspirei fundo, irritado.
Quem diabos teve a ideia de deixar entrarem agora?
A luz do corredor invadiu o quarto, junto com vozes baixas e passos hesitantes. Abri os olhos devagar e vi as duas figuras que menos queria encarar naquele momento: minha mãe, Rosa, com o rosto contraído de preocupação, e logo atrás dela, Chiara, com a expressão tensa.
— Alessandro… — disse minha mãe, se aproximando. — Meu Deus, filho… O que aconteceu? Por que ninguém me contou nada? Você… você está bem?
Cerrei o maxilar, tentando manter a calma. Era minha mãe. Mas a paciência estava curta, muito curta.
— Doei um rim — falei, direto.
— O quê? — ela arregalou os olhos, parando a dois passos da cama. — Como assim "doou um rim"? Pra quem?!
Chiara ficou branca, os olhos saltando.
— Espera… o quê? — ela repetiu. — Você... fez isso por quem?
Respirei fundo. Sabia que, ao abrir a boca, aquele quarto viraria um campo minado. Mas não tinha mais como fugir.
— Meu filho, Gabriel. O filho da Larissa.
Rosa deu um passo para trás, como se tivesse levado um soco no peito.
— O... seu filho? — ela sussurrou.
— Sim — confirmei. — Ele é meu filho.
— Isso é algum tipo de piada?! — Chiara explodiu. — Aquele garoto era do Guilherme! Do enfermeiro!
Virei o rosto devagar para encará-la, a voz fria:
— Eu achava, Chiara. Mas hoje as coisas mudaram. E você e eu vamos conversar muito bem sobre onde exatamente você conseguiu aquelas provas há quatro anos atrás.
Ela empalideceu ainda mais, dando um passo para trás.
— Eu… Eu só quis te poupar, Alessandro… Aquilo chegou até mim, eu achei que você precisava saber, que… que você não merecia ser enganado…
— Esse não é o momento, Chiara — cortei, ríspido. — Não agora.
Minha mãe ainda estava processando, a mão no peito, os olhos marejados.
— Vocês… vocês sabiam disso todo esse tempo? Alessandro, você sabia?
— Soube hoje. — Minha voz saiu baixa, cansada. — Ela tentou me contar antes. Eu que não quis ouvir.
— Mas como aquela desgraçada teve coragem?! — Rosa gritou, dando um passo à frente. — Esconder um neto meu por quatro anos? Essa mulher é uma víbora, uma…
— Cala a boca! — minha voz ecoou no quarto, firme e carregada de raiva. — Você não tem o direito de falar assim dela.
Rosa me olhou como se eu tivesse lhe dado uma bofetada.
— Você vai defender ela depois de tudo?!
— Sim, vou. Porque a culpa não foi dela. Foi minha. Fui eu quem virou as costas. Fui eu quem acreditou nas provas erradas. Ela tentou me contar, mais de uma vez, e eu… eu não quis ouvir.
O silêncio caiu como uma bomba. O rosto da minha mãe desabou, perplexo. Chiara desviou o olhar, visivelmente desconfortável.
— Sim… Como ele está?
Doutora Sandra suspirou, e aquilo bastou para me fazer entender que a resposta não viria fácil.
— A cirurgia foi concluída com sucesso, sem complicações técnicas. O rim foi implantado e o procedimento de conexão vascular foi satisfatório. Ele está na UTI neste momento, sob observação intensiva.
— UTI? — repeti, tentando controlar o nervosismo que subiu pela garganta. — Mas por quê? Achei que… por eu ser compatível…
Ela se aproximou da poltrona ao lado da cama, sentando-se com calma. Sua voz era firme, mas havia uma delicadeza que eu respeitei.
— Alessandro, mesmo em casos de alta compatibilidade genética, como o de vocês, pai e filho, o mais próximo possível de um doador ideal, ainda existe a possibilidade de rejeição aguda. O corpo pode, nas primeiras horas ou dias após o transplante, identificar o novo órgão como um corpo estranho. Isso acontece porque o sistema imunológico de Gabriel está ativado e fragilizado ao mesmo tempo.
A cada palavra dela, uma nova preocupação tomava forma na minha mente. Tentei manter a respiração calma, mas era como tentar conter um incêndio com as mãos nuas.
— E o que acontece se… se houver rejeição?
Ela olhou nos meus olhos, sem desviar.
— Estamos monitorando de perto. Ele já está sob um protocolo imunossupressor, que são medicamentos específicos para impedir que o sistema imunológico ataque o rim. O que precisamos agora é observar as próximas doze, vinte e quatro, quarenta e oito horas… — ela fez uma breve pausa — ...e ver como o organismo dele reage.
— Tem algo que eu possa fazer?
— Neste momento? Não. O melhor que pode fazer é descansar, recuperar-se da sua cirurgia e manter-se emocionalmente estável. Gabriel precisa do seu rim funcionando bem — ela tocou o centro do peito com a mão — mas também vai precisar de você como pai, quando acordar.
Pai.
A palavra ecoou dentro de mim com um peso que ainda estava tentando compreender. Eu já era pai há quatro anos. E não sabia. Tinha perdido o nascimento, os primeiros passos, as primeiras palavras. Perdi tudo. E mesmo assim, ali estava eu, tentando recuperar uma vida inteira em um só gesto.
— Ele vai passar quanto tempo na UTI? — perguntei, tentando manter a voz firme.
— Pelo menos até amanhã à tarde. Mas pode se estender por mais um ou dois dias. Tudo vai depender das funções renais, da resposta aos imunossupressores e da estabilidade clínica geral. Se ele mantiver bons níveis de creatinina, diurese e estabilidade hemodinâmica, poderemos tirá-lo da UTI e levá-lo para o quarto.
Fechei os olhos, absorvendo cada palavra.
Ela se levantou, ajeitando o jaleco branco.
— Eu volto em algumas horas para reavaliar seus sinais e te atualizar sobre ele. Qualquer dor incomum, febre ou desconforto, avise a enfermagem imediatamente.
Assenti, mas ainda sentia um nó no estômago.
A enfermeira recolheu os materiais, desejou um "boa recuperação" e também deixou o quarto.
Fiquei ali, sozinho de novo.
Mas agora não havia mais raiva. Nem frustração. Apenas um medo silencioso que se espalhava dentro de mim como uma sombra fria: o medo de que não fosse o suficiente. De que mesmo tendo dado um pedaço de mim, a vida me levasse o Gabriel antes que eu pudesse chamá-lo de "meu filho" em voz alta.
Fechei os olhos e murmurei uma prece sem forma. Que ele ficasse bem. Que resistisse. Que aquele pequeno corpo, tão guerreiro, aceitasse o que eu tinha dado.
Comentários
Os comentários dos leitores sobre o romance: Aliança Provisória - Casei com um Homem apaixonado por Outra
Esse tbm. Será que nunca vou ler grátis...